Relato Darjeeling
JUVENTUDE NO HIMALAIA
A segunda viagem de trem na primeira classe não parecia ser tão diferente do Sleeper, o trem chegou à Siliguri sobre a escuridão, já passava das 23hs, até então não havíamos chegado a uma cidade tão tarde, descemos na pequena estação, procuramos uma guest house ao lado da estação, as ruas estavam desertas, quer dizer quase, sempre há um indiano querendo auxiliar um turista, ele estava um pouco bêbado, mas nos guiava pelas ruas locais em busca de um hotel, a maioria estava lotado, até que chegamos no Motorist Inn onde encontramos vagas, deixei as meninas no quarto e fui resolver toda a burocracia, se você vai para Índia, vá se acostumando, você leva quase uma hora preenchendo o formulário para se hospedar em um hotel.
Naquela noite fazia muito calor, muitos mosquitos invadiam o quarto, na TV vimos pela primeira vez o informe de uma bomba ter explodido em uma cidade Indiana, em Guwahati, não ficava próximo da nossa rota, ufa! O jornalismo aqui também é sensacionalista e as bombas não tinham relação com terrorismo e sim nativos da região brigando por suas terras...
A cidade era calma, estava ansioso, iria fazer a tão sonhada viagem no trem de brinquedo pelo Himalaia Indiano, momento que sonhei por longos anos, foi o que me inspirou a realizar essa grande expedição pela Índia... Geograficamente estamos em um pedacinho da Índia que fica entre o Nepal, Butão e Bangladesh, em que as fronteiras se entrecruzam em menos de 50 quilômetros...
Pela manhã, pudemos observar como a estação de Siliguri era graciosa, mas ao chegar ao guichê de embarque fomos informados do improvável: a partida do trem fora cancelada naquele dia, não acreditava! Não podia ser, andava pela estação e perguntei a outra pessoa, que confirmava o cancelamento...
Veio a grande frustração, fiquei sentado por alguns minutos do lado da pequena plataforma onde saia o trem de brinquedo, do lado várias placas douradas iam contando as histórias do surgimento dessa linha, da plantação de chá e dos britânicos, as garotas sugeriram tentar fazer o percurso no dia seguinte, mas disse que não, não podíamos perder um dia em Siliguri, em uma trip temos que deixar algumas coisas para trás, infelizmente nessa viagem era o trem de brinquedo, a alternativa foi subir a montanha de jipe, o percurso levou cerca de cinco horas e fez o mesmo caminho do trem. A estrada beirava os trilhos, íamos chegando finalmente na fantástica cidade de Darjeeling, começávamos a avistar a vasta plantação de chá pela região, a cidade parecia uma espécie de Campos do Jordão indiano.
Do calor intenso da noite passada para o frio constante do Himalaia, sim podíamos ver a cordilheira coberta de neve, enquanto íamos subindo as estreitas estradas por caminhos íngremes ao som das buzinas, as meninas fechavam os olhos a cada curva do lado de uma ribanceira, as rodas chegavam a beijar o abismo, as casas de madeira foram construídas sobre as montanhas e as gompas se destacavam por suas fortes cores quentes, a cidade era mais ou menos como esperava, os traços orientais, a calmaria e o clima do local me deixava feliz, o jipe nos deixou na avenida principal da cidade, a Hill Cart Road. O próximo passo era procurar o hotel, encontramos um por 500 rupias, com uma vista fantástica para o Himalaia, todo de madeira, muito gracioso, mas as garotas não gostaram, pois no banheiro não havia privada...
Decidimos ficar uma noite por lá e arrumaríamos um com privada para os outros dias, saímos para explorar a cidade e procurar um novo lar, procuramos e nada encontramos, todos os hotéis não tinham privada, decidimos ficar onde estávamos mesmo.
Por Darjeeling estar muito próximo da China, tudo nas lojas era absurdamente barato, então foi aqui o local escolhido para fazer as compras. O frio que naquele dia chegava aos 5º graus, nos fez comprar muitas roupas de inverno: um mijãozinho salvador para as futuras noites no Himalaia, uma touca, luvas;
Em um grande mapa da cidade, na praça principal, chamada de Chowrasta, nos indicava as atrações da cidade, este local era o ponto de encontro dos ociosos e dos turistas que visitavam a cidade... Víamos as mulheres preparando as lareiras para aquecer as pessoas, não encontrávamos geladeiras, e devido às condições do tempo nos açougues as carnes ficavam penduradas nas janelas, decidimos descer a estradinhas que nos levava ao Zoológico da cidade, a maioria das pessoas andavam a pé por Darjeeling e em sua maioria se constituía de jovens, até então nunca tinha visto tantos jovens e crianças pelas cidades indianas, mas antes que seguíssemos pela estradinha na calmaria do mundo, uma bifurcação com um dezenas de plaquinhas nos fez seguir para outra direção, o mirante onde podíamos observar o Kangchenjunga, uma das montanhas mais altas da região, o mirante era lindo, tentávamos registrar o momento, mas as máquinas não conseguiam! A claridade era intensa, mesmo colocando no modo neve, ao fotografar a paisagem a neve do Himalaia se unia com as nuvens, então guardamos aquele lindo momento na memória e continuamos nosso passeio rumo ao Zôo...
Pela primeira vez me sentia em paz na Índia, nas ruas poucas pessoas, somente o barulho do vento e das árvores que circundavam a estradinha, chegamos ao Zoológico e pudemos observar animais raros como o coala vermelho, o tigre de bengala e a pantera da neve... No fundo do Zôo ficava o museu HMI, o mais importante a retratar as escaladas rumo ao Everest... A história dos Sherpas, os equipamentos, as imagens, tinha até uma maquete do trem de brinquedo... Eu pessoalmente adorei a visita ao museu, como não poderia chegar até a base do Everest, pois as garotas não aguentariam, foi um consolo e mais do que isso, um forte incentivo para retornar ao Himalaia e chegar até a base numa próxima viagem...
Provamos uns docinhos deliciosos, muito parecidos com os doces de leite mineiros, que infelizmente agora não recordo o nome... As placas indicavam para o Valley Ropway, local que de bondinho se cruzava os vales montanhosos da cidade, decidimos descer até lá, passamos pela linda faculdade de St. Joseph com sua arquitetura britânica, ao chegar ao local tivemos uma decepção: o bondinho há muito tempo não funcionava! Tiramos algumas fotos com o que restou dele e voltamos para a cidade pra apreciar a comida local, e comer o bom e velho Chopp Suei...
Na parte da tarde descobrimos que o Big Bazzar é o que chamamos aqui no Brasil de shopping e lá encontramos um cinema parecido ao de Varanasi, diria que até melhor, passamos aquela tarde como legítimos paulistanos, passeando pelo Bazzar, o engraçado é que eu não faço isso no Brasil, decidimos assistir pela primeira vez um filme bollywoodeano e como eles, compramos pipocas e refrigerante e entramos no cinema, a organização era incrível, todas as poltronas eram numeradas, o filme rolava em Hindi entre danças e muita ação nos divertíamos com o filme “Ghajini”, depois de duas horas chegava o intervalo, todos saiam do cinema pra compram mais pipoca e refrigerante, enquanto os funcionários com aspiradores limpavam o carpete coberto de sujeira, era hilário, voltamos e continuamos assistindo a segunda parte por mais duas horas do filme...
Como no Brasil a pirataria rolava solta pela Índia, era possível comprar os filmes do momento nas barraquinhas locais, já havia escurecido e em um golpe de sorte avistamos o Pub, Joey´s, finalmente uma baladinha, por que não? Entramos, somente gringos, envolta a uma fumaceira de cigarro, numa TV assistiam a Liga inglesa de futebol, em outras mesas com cerveja e whisky mochileiros discutiam o próximo dia da trip, tiramos as luvas e pedimos vinho e cerveja, na radiola tocava Beatles e Creedence, por volta das nove horas decidimos voltar para o hotel, daí veio a surpresa, o hotel estava fechado! Batemos na porta e ninguém saia, desesperados continuávamos fazendo barulho, acordamos o vizinho, e, como um bom indiano veio nos ajudar, ligava para o hotel, batia na janela, chamava a dona e ninguém atendia, no fim das contas o vizinho nos arrumou outro hotel para ficar naquela noite, aquilo foi incrível, totalmente inusitado, nossas bagagens em um hotel e nós em outro, pagando duas contas... Pela manhã fomos reclamar, a senhora do hotel disse que sentia muito, mas todos os hotéis fechavam as oito horas! Ria pra não chorar... O fato é que depois daquele dia, nada mais de balada, pelo menos, até tarde...
Acordei cedinho e as garotas não estavam muito interessadas em explorar a cidade naquela manhã, então fui sozinho, pra minha tristeza (Viva!) caminhar pela cidade... Desta vez me dirigi para o sul de Darjeeling...
Caminhava tranquilo no frescor da manhã (1º Grau) observando as fachadas das casas, as crianças e os idosos, vi depois de muito tempo uma igreja católica, a imagem de Jesus na cruz é rara de se encontrar na Índia, fui visitar a estação de trem para ver o que me frustrara, o trem de brinquedo, mas diante de tantas atrações interessantes, ele se tornara obsoleto, ao lado ficava um templo hindu, Dhirdham, com sua entrada colorida, estátuas exóticas de dragões e jovens sentados na pracinha, sim isso era o que mais adorava no Himalaia: lugar para sentar, poder apreciar sem ninguém me aborrecendo...
Continuei meu caminho rumo ao sul do vale, mais uns dois quilômetros, até chegar a gompa de Sonada, que tinha visto do jipe quando cheguei à cidade... Fiquei um bom tempo por lá, os monges não me incomodavam, apenas observavam rindo do estranho que tirava foto de tudo, os detalhes eram muitos, do teto, das Stupas, a fachada não cabia em uma foto, precisei de três, para que a captasse por completo, elefantes foram esculpidos na parede, imagens budistas estavam por todas as partes...
Voltei satisfeito para o hotel, com o que tinha visto pela matina, ainda deu tempo de visitar uma mesquita verde... Reencontrei as meninas para tomar café... Agora juntos, iríamos visitar o Tiger Hill, que segundo a lenda tem uma visão deslumbrante do Himalaia.
Em Darjeeling temos dois terminais, um dos Jipes que nos levam para algumas cidades próximas daqui e outro com uns carrinhos antigos, que servem como táxi e nos leva a localidades mais próximas, como o Tiger Hill. Acertamos com um motorista um preço justo de ida e volta com parada na Gompa de Ghoom, a mais antiga da Índia, assim seguimos, mas logo descobri que não era uma boa ideia seguir de táxi até o topo da montanha, o divertido seria reservar um dia e seguir caminhando, desfrutando da paisagem até o cume...
Chegando ao mirante, mais uma decepção, a vista estava encoberta por uma vasta cerração, ficamos alguns minutos no cume desiludidos com a situação, não tínhamos muito que fazer lá, então fomos à Gompa de Ghoom, a biblioteca é fantástica, não podíamos tocar nos pergaminhos, mas só de olhar impressionava, do lado de fora eu realizei um outro sonho: rodar as giratórias budistas, orando, eu adorava fazer isso, na gompa tinha uma imensa, maior que as meninas... Vimos as arquiteturas e a gigantesca estátua dourada de Buda sentado em um fundo azul enigmático, saímos encantados do local, na verdade todos começavam a curtir a viagem na calmaria do Himalaia...
No almoço, para escapar um pouco da dieta vegetariana Hindu, pedimos carne: estava deliciosa e muito apimentada, só uma Maaza para refrescar a garganta. Maaza é o refrigerante indiano, que nós o denominamos como genuinamente nacional, como o nosso guaraná, o daqui é de manga... Perguntamos a origem da carne, a garçonete soltou uma breve gargalhada e nada disse, talvez fosse melhor assim, sem nada saber...
Na parte da tarde era hora de conhecer o centro de refugiados do Tibete, que vieram para cá, após a expulsão e caça aos tibetanos realizada por Mao Tsé-Tung. Descemos a montanha, caminhamos muito por uma estradinha com fábricas abandonadas, já estávamos quase desistindo, achando que nunca encontraríamos o local, até que finalmente lá estava ele, a primeira impressão não foi das melhores, o ar estava carregado, alguns jovens jogavam basquete no local, aquele sítio era muito triste, as cores, a disposição me faziam lembrar de algum centro de concentração ou presídio, não quis ficar muito tempo ali, voltamos à cidade para tomar o que é considerado por muitos especialistas o melhor chá do mundo, que vinha envolvido por um isolante térmico, para conservá-lo quente, como não sou um grande mestre de chás, não vi muita diferença do chá mate...
Me senti um privilegiado, acredito que apenas umas centenas de brasileiros estiveram por aqui, então levar um pacote de chá para casa era uma grande honra, iguaria de estimável valor... Voltamos rapidinho para o hotel, nada de ficar para fora está noite... Tomar banho foi dureza, a ducha não conseguia aquecer a água naquela temperatura abaixo de zero, já da torneira ao lado, a água fervia... Solução: tomar banho de balde, a moda antiga e com uma mistura de sensações incríveis, cada canecada de água em meu corpo a pele queimava, cada segundo sem jogar, a pele congelava, mas nos fins das contas, pude dormir cheirosinho ao menos àquela noite...
Marcelo Nogal






A MISSA DO MOCHILEIRO
QUANTO TEMPO FIQUEI: 3 DIAS (VISITANDO O ZOO - INDO ATÉ O TIGER HILL - VISITANDO OS TEMPLOS DA CIDADE) ;
COMO CHEGUEI: DE JIPE DE SILIGURI ATÉ DARJEELING (6HS);
ONDE FIQUEI: HOSTEL NO CENTRO DA CIDADE;
OBS. (NA MAIORIA DAS VIAGENS QUE FIZ NÃO RESERVEI HOTEL - GERALMENTE FICO NOS MAIS BARATOS, QUE NÃO TEM NOME, NEM SITE NA INTERNET)
O QUE COMI: COMIDA INDIANA;
COMO ME LOCOMOVI: A PÉ PELA CIDADE;
PRA ONDE FUI: DE JIPE ATÉ GANGTOK - 6HS - (SAI QUANDO ENCHE);
