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Relato Ávila

DAS GERAÇÕES

 

Descobri que os trens da Espanha são os melhores lugares pra dormir, comparado com os lugares que tinha dormido ultimamente, o meu vagão era uma suíte cinco estrelas perfeito, pena que durava pouco... 

O trem parou, e, desembarquei em Ávila. Pequena, desconhecida para nós brasileiros. A cidade medieval tem lá seus encantos, se Toledo era minha cidade laranja, Ávila era minha cidade branca, com suas muralhas, torres, catedrais, ameias, museus... Tudo que eu adoro ver, mas tinha um pequeno problema: estava difícil de caminhar, as dores e as bolhas triplicaram no meu pé, vira e mexe as ruas de paralelepípedo da cidade me castigavam, ai tinha que parar e tratar da ferida! Estava avançando lentamente... Mais parado do que em movimento, seguia fotografando as muralhas da cidade.

Grande parte das pequenas províncias de Castilla são habitadas por idosos, os jovens seguem para os grandes centros cosmopolitas da Europa... Pela dificuldade de andar, resolvi ir a uma casa de repouso da cidade, que também servia refeições, era um dos poucos lugares abertos naquele Domingo... Advinha quem ia almoçar: Os velhinhos! Eu estava lá no meio também, pra gastar meus últimos euros e apreciar a culinária local, o viajante manco e ranzinza, já estava quase aderindo ao grupo dos aposentados de Castilla... A língua espanhola falada aqui é mais complexa, difícil de entender a principio, depois com o tempo vou treinando o ouvido e me acostumando... Como adoro omeletes, pedi uma Tortilla! Vinho pra acompanhar, uma papa branca que não subi identificar, deve ser arroz moído, pra facilitar quem é banguelo... E pudim na sobremesa! Os velhinhos vinham tomar sopa, falar sobre compras de fincas. Outros velhinhos tomavam café e jogavam ludo. Descobri porque meu avô jogava ludo comigo, de onde vinha essa tradição...

Na verdade escolhi vir para essa região da Espanha, em busca das minhas origens. Nogal é uma árvore originaria especificamente da província de Candeleda, meu avô viveu quase toda sua juventude nesse vilarejo, casou, teve filhos e após eclodir a guerra civil espanhola, resolveu fugir de navio para o Brasil, em busca de um futuro melhor, o destino era o Rio de Janeiro, minha vó embarcou gravida, depois de 30 dias, Poseidon mudou o rumo das coisas, e o barco acabou atracando no porto de Santos, e, depois de subir a serra, meu vô decidiu se estabelecer em Santo André, alguns meses depois minha mãe nasceu em terras brasileiras, o que me dificulta ter dupla cidadania... Meu avô durante as jogatinas de ludo me contava sobre seu desejo de regressar a Candeleda, o Brasil não lhe trouxera prosperidade, talvez Poseidon o tivesse amaldiçoado, ele não conseguiu alcançar seu objetivo, jamais voltou à terra amada... Minha tia e um dos meus primos moravam em Candeleda a pouco mais de um ano, foram tentar a sorte o “sonho europeu”, eu não gosto muito de pedir favor as pessoas, sempre gostei de me virar sozinho, esse é meu orgulho idiota: ser independente, mas pela falta de mobilidade, resolvi abrir uma exceção, então pedi para que meu primo me buscasse em Ávila.

 

 O povo da terceira idade, tipicamente cristão, não sai de casa aos Domingos, se o faz é para ir somente até a igreja, quase nada estava aberto em Ávila, até o terminal rodoviário estava fechado, só as moscas e eu se queimando no sol da praça, até que meu primo rompeu o silêncio chegando num Peugeot bege dos anos 70 caindo aos pedaços, afinal reclamar do quê? Descemos a serra até Candeleda, a estrada sinuosa tinha uma bela paisagem semiárida, meu primo descia no ponto morto a serra, emoção do início ao fim; Começava a encontrar meu nome estampado nos comércios do vilarejo: Funerária Nogal! Que começo fúnebre... Espero que não seja um presságio. Encontramos com minha tia, e, a primeira coisa que ela disse foi: “Cielo, esse seu pé tá feio, heim! Perigoso dar uma gangrena!” Depois foi a parte mais chata, me levar pra conhecer toda a família do meu avô que vivia em Candeleda, que não deixou o país nas épocas de Franco, tio da tia da avó, prima da irmã da bisavó, dava pra ver na cara deles que eles não davam a mínima pra mim, eu não representava nada pra vida deles, mas pra manter a irritante educação europeia, me cumprimentavam e sorriam, as vezes faziam aquela pergunta evasiva: “Ele é filho de quem?” na verdade eu era só orgulho para minha tia por estar ali, segui para o antigo endereço de minha Bisavó Margarita!

Encontrei o antigo sobradinho na Calle Del Pozo, construção antiga de pau a pique, era uma casinha bem modesta, sem janela, reboco branco, alguns vasos com flores secas na entrada... Aquele era o local que meu avô crescera, senti uma sensação estranha: aquilo era parte da  minha história, mas ao mesmo tempo percebia que aquilo não mais me pertencia... O Nogal vinha daqueles vales, meu sangue era herança daquela terra bruta e árida, mas ao mesmo tempo o Nogal de hoje era um Latino Americano livre, não fincado numa terra, mas livre para construir e prosseguir com uma nova história...

Os livros da biblioteca da cidade, contavam um pouco mais da minha origem: em uma das quadras que margeiam a Plaza Castillo, em épocas medievais, havia sido um gueto habitado por judeus, em tempos sombrios os judeus eram obrigados a se converter ao cristianismo, se negassem seriam caçados pelos cruzados e mortos na fogueira da inquisição, alguns fugiram para o norte da Espanha, os que ficaram, abandonaram seus nomes judaicos e se tornaram os novos cristãos... Nogal se tornou o sobrenome, em homenagem a madeira singular que nasce desses vales, que os fizeram prosperar por várias décadas...

No cemitério de Candeleda acendi uma vela pra minha bisavó, Margarita, a única que mantivera contato com minha mãe por carta... Reli a correspondência em espanhol que ela enviou pra minha mãe em meados de 78, dizendo que gostaria de conhecer o bisneto, recém-nascido... Eis me aqui, depois de quase 30 anos para o encontro... Estava vendo o vento brincar com o fogo da vela, num cemitério cercados de troncos de Nogal. Silêncio naqueles confins esquecidos da Europa, abandonado pelas novas gerações... Espero que meu vô onde quer que esteja, se orgulhe do neto viajante, eu cheguei até aqui por ele, em nome de nossa história, ainda sem saber ao certo o que significa “prosperidade”...

Marcelo Nogal

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A MISSA DO MOCHILEIRO 

 

QUANTO TEMPO FIQUEI: 2 DIAS (CAMINHAR PELA CIDADE MEDIEVAL);

 

COMO CHEGUEI: DE TREM DE MADRID - RENFE - 3HS DE VIAGEM;

 

ONDE FIQUEI: FIQUEI NA CASA DE MINHA TIA EM CANDELEDA;

 

O QUE COMI: COMI AS TORTILHAS ESPANHOLAS EM UM RESTAURANTE FORA DAS MURALHAS, 10 EUROS A REFEIÇÃO;

 

COMO ME LOCOMOVI: CAMINHANDO PELA CIDADE;

 

PRA ONDE FUI: VOLTEI DE TREM PRA MADRID;

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