top of page

Relato Vilankilos

Uma guerra civil dentro da viagem

Diante de uma eminente guerra civil em Moçambique, eu acreditava que atravessar de ônibus a zona de tensão seria tranquilo... Inocência minha...

Na cidade fronteiriça de Manica, paguei 75 dólares pra obter um visto de turista em que mal conseguia me enxergar na foto tirada pelo policial aduaneiro, que com seu português moçambiquenho tentava me tranquilizar dizendo: “Não problema, companheiro!”, colou meu visto no passaporte, ajeitou sua boina vermelha e desejou boa viagem... Subi naquele ônibus azul que cheirava a graxa, eu era o único branco dentro daquela lata velha, as janelas enferrujadas não fechavam... Depois de viajarmos durante toda a noite, o ônibus parou em alguma aldeia a beira da estrada na região central de Moçambique, naquela hora já fazia muito calor e parecia que todo vilarejo esperava pelo ônibus celeste, vendedores locais cercavam o ônibus gritando e vendendo de tudo, algumas mulheres trajavam belos sarongues coloridos... Eu não sabia que milicianos da RENAMO tinham o controle daquela aldeia, eles ficavam observando ao redor tudo que acontecia por ali com fuzis pendurados no pescoço, eles usavam boinas pretas...

Tivemos a péssima ideia de descer do ônibus, um branquelo no covil dos leões, meu parceiro de viagem, Tio Nelson, teve uma ideia pior que a minha, achando que tudo era ‘paz e amor’ no paraíso africano, inocentemente tirou uma foto de um nativo com sua bicicleta, motivo suficiente pros soldados da RENAMO apontarem os fuzis pra nossa cabeça pedindo a câmera fotográfica, eles falavam entre si em um dialeto local, tirando a capital Maputo, o idioma da colonização é inimiga da resistência, considera segunda língua na maioria dos vilarejos do país... Mas se assustaram aos nos escutar falando português pra tentar explicar o ocorrido: “Gringo falando português, de onde é esse sotaque?” Um dos milicianos tomou a câmera do Tio Nelson e o levou pra dentro de uma tenda branca para um interrogatório, eu permaneci ali com uma arma apontada pra minha cabeça, com o suor escorrendo pelo rosto, e, com o zumbindo das moscas tentando pousar na minha orelha... Aqueles minutos pareciam durar a eternidade, pela minha mente passavam milhares de pensamentos: “Eles iriam apagar o Tio Nelson? Fazer a gente de refém? Será que estariam o torturando dentro da tenda? Seria o fim da viagem? Eu seria o próximo?” Até que vi o Tio Nelson saindo da tenda com a máquina fotográfica na mão, o miliciano que o acompanhava, sorridente disse: “Boa viagem, gringos!” Subimos para o ônibus correndo, e, quando a lata de sardinha partiu dali; o alívio...

Depois Tio Nelson me contou: Deu 50 dólares que tinha no bolso para nos deixarem partir, eles não viram e nem apagaram nenhuma das fotos tiradas no vilarejo, mal havíamos chegado à África e já fomos extorquidos...

Finalmente chegamos à Vilankulos, daqui pro sul do país não correríamos mais perigo, porque a região era controlada pelo FRELIMO, ali em Vilankulos fica uma das praias mais lindas que conheci na minha vida, banhada pelas águas cristalinas do Oceano Índico, que com o vai e vem das marés, deixava o mar com sete faixas de cores diferentes, reflexo do meu arco-íris particular no paraíso... Sentei na areia e refleti na brisa do mar, sobre aquela paz paradoxal, tentava compreender como um país lindo daquele estava em uma guerra civil... Ganância humana, ignorância, fome...

A pousada que me instalei, em Vilankulos, era constituída de várias tendas tradicionais de palha, a maior abrigava doze viajantes, e, ao invés de uma cama, uma rede... Estava me preparando para ir dormir, entretanto, mais veloz do que a luz, foi a noticia que se espalhou pela cidade: “Um brasileiro que tinha viajado por mais de 70 países estava hospedado na Baobab Beach.” E o recepcionista da pousada veio até a grande tenda à minha procura: “Boa noite, o senhor é o viajante brasileiro?” “Sim, sou eu, por quê?” “Tem um senhor, na recepção, que gostaria de falar com o viajante?” “E sobre o que seria?” “Ele disse ter viajado por 90 países, e, gostaria de saber sobre suas percepções do mundo, também disse que a bebida é por conta dele!” “Tio Nelson, você tem algum compromisso pra hoje à noite?” “Não, e você?” “Também não, então bora virar à noite bebendo e conversando sobre viagem, bora compensar os 50 dólares perdidos e comemorar a insana travessia...” Era o que nos restava naquela noite estrelada no leste da África.

Marcelo Nogal

onibus moçambique mochileiro
vilankulos mochileiros
Moçambique cotidiano
bottom of page