Relato travessia
Malawi - Tanzânia
“O Dragão Vermelho”
A grande travessia de ônibus entre Malaui - Tanzânia feita por um Mochileiro!
Uma aventura que até poderia ser um filme cômico-dramático!
Cheguei encharcado no hotel para pegar a Matrix, já estava escurecendo e a chuva não dava trégua, ainda caminharia uns 15 minutos pela cidade até o local de onde saia o bus para a Tanzânia, as ruas de Lilongwe estavam todas enlameadas, escutava os cânticos dedicados a Ala ressoar do minarete da Maslak-E-Ala-Hazrat. Uma gota gelada e contínua que pingava do meu boné encharcado caia no meu nariz, nem mais desviava o allstar red das poças, era cada mergulho, rsrs...
Não havia terminal Rodoviário em Lilongwe, os ônibus saiam de um grande descampado do lado de uma mesquita. Cheguei e avistei um imenso ônibus vermelho, caindo aos pedaços é claro, rsrs... Jogaram a Matrix pra cima do ônibus e a cobriram com uma lona. Dentro do “Dragão Vermelho” tinha um Japonês de uns 50 anos, eu era o único branquelo de zoio claro dentro daquele ônibus, e, os demais passageiros eram todos nativos negros com aquelas lindas roupas coloridas e brilhantes.
Do meu lado sentou uma senhora gigante com um vestido dourado, um longo turbante colorido e com uma criança de colo que chorava, ela tentava conter a criança a balangando de um lado pro outro. O imenso ônibus rapidamente lotou, e, para completar a lotação os malauis traziam baldes e os faziam de bancos nos corredores, o calor humano ia secando minha roupa molhada! Por dentro o ônibus foi todo forrado com uma napa vermelha. Quando o motorista ligou o motor, a fumaça entrava pra dentro do veículo, deixando o ar esfumaçado, as brumas de Lilongwe, rsrsrs... Dai o nome “Dragão Vermelho” estava na garganta daquele monstro motorizado... A previsão era de 18hs de viagem entre Lilongwe e Dar Es Salaan, mas o Dragão não acordava... Trabalhavam de baixo da chuva incessantemente, iam entupindo de malas e bugigangas arriba do ônibus... A criança insistentemente resmungava pra mãe que queria ir ao banheiro, esse era o motivo do choro. Eu tentava assimilar toda aquela zona com naturalidade... Então a senhora me disse (em mímica): “Vou levar minha filha ao toalete, pode cuidar da minha bolsa?” “Claro!” balancei a cabeça, deixou sua bolsa de couro falso no assento e desceu... Depois de três minutos o ônibus começou a se movimentar, brumas de Lilongwe pelo ar again. Eu preocupado com a senhora, pedi para os outros malauis que estavam no corredor que avisasse o motorista, para que ele esperasse a senhora com a criança... Mas o chofer deu com os ombros e seguiu viagem, dai apareceu o cobrador ambulante do Dragão Vermelho e me disse, com um inglês pior que o meu: “Desceu ficou, cada um com seus problemas!” pegou a bolsa e a jogou no guarda malas arriba das poltronas e redirecionou alguém do corredor para o assento agora disponível...
Adormeci... Só acordei com um imenso estrondo, levei um susto danado, com todo mundo em pânico gritando... Abruptamente o imenso ônibus havia se partido no meio... Imaginem um “V”, era como estava a garganta do dragão... O motorista tranquilamente comendo um pedaço de frango desceu do ônibus, foi até um recipiente com ferramentas, e, tirou de lá uma imensa chave inglesa, pelo menos era o que parecia aquele instrumento medieval, essa chave inglesa era maior que o motorista... Seu Jorge, assim o apelidei, que sorridente disse: “I Like my job!” entrou debaixo do Bus... Parecia que o eixo do câmbio havia se soltado ou algo assim, e, como que se estivesse apertando uma rosca, vagarosamente o assoalho do ônibus ia alevantando, até ficar reto novamente, a garganta do dragão estava alinhada.
Depois de duas horas de espera, vendo as estrelas do céu africano, o dragão adormecido despertou: “Solta a fumaça dragão e let's go!” Só que seu Jorge, seguiu a viagem sem acelerar o dragão vermelho, seguia mansamente, mas... Quando o ônibus passou por uma lombada próxima a um vilarejo Maláui, o movimento brusco vez a garganta do dragão virar V novamente, depois dos gritos dos passageiros e de outro susto, lá estava indo seu Jorge com seu grifo gigante pra debaixo do dragão... Estava começando a perceber que a viagem seria mais longa que uma novela mexicana...
Depois de algumas horas: “E lá vamos nós...” Já quase amanhecendo chegamos à Mzuzu, e mesmo lotado, mais passageiros subiram no Dragão Vermelho... Quatro inocentes australianos entraram na garganta vermelha, carregavam instrumentos musicais, com o bilhete em mãos procurando sua poltrona, a 82, mas as numerações iam até 60... Bem vindo a África gringos... Foram reclamar, o cobrador ambulante, no qual apelidei de Tiamat (Este sem nenhuma cabeça, kkkk), empurrou um negão com uma túnica vinho que estava sentado no balde um pouco pro lado e disse: “Esse balde é o ‘81’ e este outro é o ‘82’... Ok?” o Australiano enraivecido se negou, Tiamat disse: “Ou senta no balde, ou no chão, ou não vai, lembre-se que a passagem não tem reembolso!” Escolheram o chão...
Como eu tinha pouco dinheiro, pedia pros nativos dentro do bus comprar os milhos fritos que eram vendidos na estrada pra mim, quando passávamos pelos vilarejos, fazia isso, porque se eu fosse comprar diretamente me cobrariam o triplo por ser branquelo. E como já era um branco de alma negra, todos os malauis dentro da garganta me ajudavam... Nos horários de reza a Maomé, Seu Jorge parava o ônibus, ao ermo, no meio da estrada, esse era o único momento que também tínhamos pra ir ao banheiro “a moita”... Estávamos chegando próximos à última cidade do Malaui, os australianos estavam preocupados com a troca de dinheiro, queriam cambiar seus Kwachas por Xelins antes de atravessar a fronteira, os malauis dentro da Garganta disseram que tinha uma casa de câmbio na cidade, eles foram até lá... Seu Jorge ligou o Dragão adormecido, todo mundo gritando, dizendo que os gringos tinham ido à casa de Câmbio, mas o chofer não parou, prontamente apareceu Tiamat e jogou os instrumentos dos gringos no porta-malas e disse: “Cada um com seus problemas!” “E lá vamos nós...”
Quando chegamos à aduana, não estava bem, sentia uma dor na virilha, e, me sentia um pouco febril... Mil coisas passavam pela minha mente fértil: Será que tinha andando de mais por Lilongwe? Será que a chuva de ontem me deixou gripado? Será que o milho está me fazendo mal? Estou com Febre Amarela? Vou morrer dentro da barriga do Dragão como um verme branco?
Paguei 50 dólares para obter o visto de entrada na Tanzânia e o carimbo lotou meu passaporte: “oh my god!” Agora só posso continuar minha viagem e sair da Tanzânia com um passaporte novo! Ainda continuava me sentindo mal, cada vez mais febril, e, à medida que as horas iam passando eu ia piorando, ficamos mais de duas horas na aduana, foi um pesadelo: Descia mochilas, depois vistoria, subia mochilas pra corcova do dragão, revistava todo mundo, os guardas da aduana faziam perguntas, desciam as malas de novo, traziam os cachorros farejadores, abriam algumas, subiam as malas again... Depois de 18hs de viagem ainda estávamos chegando a Mbeya, primeira cidade do lado da Tanzânia...
Depois fiz uma grande descoberta, me sentindo muito mal, tirei o Allstar do pé, para relaxar, quer dizer tentei tirar, mas o meu pé esquerdo estava completamente inchado, o tirei com muito esforço e percebi que a costura da meia estava apertando uma veia no meu pé, o que impossibilitava a circulação do sangue pelo meu corpo, o que causava a dor na virilha, a febre e o mal estar... Ao tirar a meia veio o alívio, mas detalhe: levou uma semana pro pé desinchar e caber de novo dentro do Allstar red... Oh, tragédia! Antes de chegar a Iringa o ônibus quebrou mais uma vez na estrada e seu Jorge sorridente disse: “This is my job!” “E lá vamos nós...” Depois de Iringa quebrou mais duas vezes... “E lá vamos nós...” O dragão ia manquitolando pela estrada subsaariana.
Estava morrendo de fome, já era noite, não tinha trocado dinheiro, não queria ficar pelo caminho que nem os gringos... Até que seu Jorge parou num restaurante muçulmano no meio da estrada, todos naquele lugar se vestiam com túnicas brancas, os negões de bigodão nos atendiam no restaurante no meio do nada, um prato de comida custava cinco mil xelins... Não tinha um dólar no bolso, não aceitavam cartão de crédito, estava faminto, olhei pro céu e depois pro chão e vocês caros leitores vão achar que estou mentindo, mas estava lá: uma nota de 10 mil xelins ao vento, enviada por Alá... Mansamente pisei com o pé inchado (descalço) encima da nota, torcendo pra ninguém ver ou reivindicá-la... Abaixei e a peguei rapidamente, soltei um grito pra dentro “Vouuuuuu jantaaaaaarrrr!” se fosse pra fora ninguém ia entender mesmo, mas... Comida horrorosa: uma massa grande e salgada com um pedaço de frango oleoso, mas enfim, era mochileiro, a viagem era uma grande aventura e tinha que encarar o que encontrava pelo caminho, maktub... Estava saciado, com o estomago estufado e duro e o pé inchado, acho que pior que eu só o Dragão Vermelho mesmo...
Logo o Dragão Vermelho bateu asas... E veio a fúria dos Deuses com o pobre viajante, depois do milagre a provação nas curvas do destino, que não eram poucas, começaram a me deixar enjoado: “Oh não! Essa não!” mais e mais... Pé inchado e com ânsia no estômago do Dragão... Os malauis gritaram ao motorista: “Para o ônibus que o branquelo vai vomitar!” que poderia ser intitulado de Van Damme “O grande dragão branco”, mas o motorista não parou e Tiamat como de costume concluiu: “Cada um com seus problemas!” Dai eu vomitei por toda garganta do Dragão, pedaço de frango pra todo quanto é lado... Pé inchado, boca azeda, viagem sem fim, porém aliviado... Até que na madrugada no meio da estrada, depois de Morogoro, o motorista parou o bus no meio da estrada debaixo de uma árvore e disse: “Agora vou dormir, cansei!” foi nesse momento que pudemos limpar a sujeira que eu tinha feito... Quando seu Jorge Acordou seguiu viagem, aquela jornada dentro do dragão vermelho já passava de 30 horas...
O ônibus quebrou mais uma vez, pra manter o script... E lá vamos nós, andando a 40kms por hora, para não quebrar de novo... Parecia piada sem graça, mas chegamos quase 11hs da manhã do outro dia no grande terminal rodoviário de Dar Es Salaan, um grande galpão abandonado em ruínas... 18 horas de viagem se transformaram em 40 horas de aventuras e muitas estórias insanas...
Quando exausto desci do ônibus escutei o primeiro "Jambo" dos carregadores de malas do terminal, peguei a Matrix, senti uma sensação estranha, achava que já era um filho daquele Dragão Vermelho, me despedi de todos os negões com roupas coloridas, que agora eram meus irmãos gêmeos, parecia que estávamos nove meses na barriga daquele Dragão e nascíamos em um mundo desconhecido chamado Tanzânia. Depois da sofrência era hora de se divertir naquele paraíso chamado Zanzibar... SQN... Ainda tinha que descobrir onde ficava o Consulado Brasileiro para tirar um novo passaporte... Lá ia eu, um Van Damme depois da luta, com o pé inchado debaixo de um sol de 40 graus, seguia escutando o ressoar dos minaretes dos lados de cá... O cântico mulçumano era ressoado em outra língua e era engraçado, senão parecesse cômico, mas já estava com saudades do Dragão Vermelho, e, bem que essa estória poderia ser um filme cômico-dramático, uma versão moderna de Jonas e a baleia kkk...
Marcelo Nogal



