Relato Georgetown
Sentimentos antagônicos de um mochileiro:
No limite do Sonho e do Pesadelo...
Depois de atravessar a fronteira, em Lethem, peguei uma minivan para cruzar a Floresta Amazônica do lado da Guiana Inglesa, e, chegar até capital de Georgetown. A artéria principal do país é uma estrada de terra toda enlameada, margeada por gigantescas árvores, que eu da janela da minivan não conseguia ver seus cumes, o céu era um rio azul... Todas as pessoas do lado da Guiana eram negros, a música que o motorista escutava era um ‘New Blake Soul’, ora rolava umas músicas gospel, ora um rap. A Matrix (minha cargueira) foi amarrada em cima do veículo, eu seguia espremido com mais nove passageiros, a maioria eram garimpeiros brasileiros, que tentavam ir ganhar a vida clandestinamente nas mineradoras guianas, tentar achar uma onça de ouro, ou quem sabe uma pepita para ficar milionário... O carro abarrotado de sonhos seguia lento, derrapando por aquela estrada horrorosa, e ao mesmo tempo bela, por estar encravada no meio daquela floresta impenetrável, que a cercava... Ora a minivan atravessava pontes podres, ora uma balsa que cabia apenas alguns carros fazia o serviço, atravessando o Rio Essequibo...
Chegamos a uma barreira de madeira rústica no meio da estrada, uns negões gigantes armados com rifles M16, com uniformes marrom desbotado, nos abordou pedindo que saísse do carro e fosse para um galpão velho no meio da mata... Um negão com cara de bravo ficava sentado numa mesa e ia chamando um por vez para ver o passaporte, um dos garimpeiros sonhadores me disse: “Coloque uma nota de 5 mil dólares guianos dentro do passaporte, do lado da foto! Pra eles deixarem você passar.” Todos que estavam naquela viagem fizeram isso, disse: “Não, eu não preciso pagar nada, pra entrar nesse país!” chegou minha vez, o negão arregalou os olhos e me mediu dos pés a cabeça, abriu o passaporte e não encontrou a notinha de cinco mil, ficou me encarando, então eu disse: “What´s Happening? What’s going on?” “You speak english, ualll!” olhou o meu passaporte com mais atenção e viu os vários carimbos contidos nele, eu não era parecido como os outros da minivan: era branquelo, do zoio claro, calçava allstar red, falava inglês e os sonhos eram outros... Entregou meu passaporte e me acenou para seguir. Um garimpeiro disse: “Que estranho, ele não te cobrou nada! O que aconteceu?” “Não tenho a menor ideia!” Talvez no fundo eu soubesse... Passamos por mais cinco postos fronteiriços ao longo da estrada, os garimpeiros pagaram em todos, eu em nenhum...
Já era alto da noite e o motorista parou a viagem, no meio da floresta tinha uma pequena casinha, em que uma senhora alugava redes por cinco reais a noite, os garimpeiros alugavam as redes e as amarrava nas imensas árvores, assim foi minha primeira noite dormindo no meio daquela floresta ao relento! A rede balangava e os sons que eu escutava era um mister de sentimentos: ora fascinante, ora aterrorizante! A selva parecia mais viva do que nunca, ouvia sons de macacos, de cobras, de onças, cigarras... Aquele omelete de ruídos era empolgante, será que eram alucinações? Confusões mentais? Pareciam estar do meu lado, em alguns momentos parecia escutar um animal andando debaixo da rede e quando olhava não tinha nada... Os ecos vinham de todos os lados e não me deixavam dormir, aquela madrugada parecia que iria sonhar acordado... Antes do sol surgir, o motorista veio em cada rede, jogando a luz da lanterna na nossa cara, dizendo: “Let’s go!”
Depois de 17 horas de pesadelos, cruzamos os 550km de estrada de terra e chegamos a Georgetown... Eu não acreditava que aquele local estava na América Latina, a cidade parecia uma grande fazenda velha abandonada... Sim, essa era a herança das antigas colônias britânicas, depois que a exploração de minerais não era mais interessante, eles abandonaram seus escravos (assalariados) aprisionados nessas terras e seguiram de volta livres pra Inglaterra.
Imensos casarões de madeiras podres, sistema de esgoto precário a céu aberto, muitos mendigos, e centenas, milhares de lixos acumulados em qualquer parte da cidade, por onde quer que eu andasse eu via aquele mar de garrafas de cervejas espalhados pelo chão, um sonho para catador de latinha, que aqui ia ter um enfarto de emoção e muita coisa pra recolher...Eu nunca tinha estado em uma cidade com um rastro de lixo deixado pela sociedade tão grande como aquele! Toda aquela miséria me intimidava, não conseguia tirar a câmera da mochila e fotografar o que via, até que cheguei à belíssima igreja de madeira, St. George's Anglican Cathedral, a maior da América Latina, parecia ser um Iceberg emergido no meio do lixo, e, os fiéis entravam engravatados na igreja com a bíblia na mão e com os sapatos devidamente engraxados, senhoras cobriam a chapinha feita no cabelo com um véu para entrar no local sagrado...
Continuava caminhando pela cidade, até que cheguei ao Mercadão Central, Stabroek Market, e como aquele lugar era antagônico a tudo que tinha visto, como podia ser! As ruas continuavam imundas, os casarões velhos todos embolorados, mas as mulheres que ali estavam, trajavam roupas lindíssimas, todas coloridas, os homens com seus cabelos rastafári e também com suas roupas coloridas... Todos cantavam e dançavam naquela feira, sorriam lindamente, tinham dentes mais brancos que as nuvens do céu... Eles pareciam não se importar, com o que estava ao redor, iam cantando e andando sorrindo pela feira... Aquela era a essência da alma africana que tanto admirava... Dançava quem vendia, dançava quem comprava, dançava quem saia de um fast food local, só eu não dançava apenas admirava, sonhando acordado... Depois quando olhei as fotos fiquei pensando “Que Guiana era essa?” Eu olhava para minhas fotos e ela parecia tão lindas e encantadoras, mas era apenas meu olhar fotográfico, pois essa não era a Guiana que eu tinha visto realmente! Era uma cidade que cantava para espantar a tristeza...
Caminhando por outra feira de Georgetown, percebo um senhor franzino tentando se comunicar em português, pra comprar algumas maçãs na barraca, mas ele não entendia nada do que o vendedor falava, então tirou notas altíssimas de dólar da Guiana da carteira (notas de mil dólares guianos), rapidamente o vendedor cresceu o zoio e ia pegando todas as notas do velhinho inocente, que estava perdido com o câmbio local, rapidamente intervi na negociação: “How much is this?” “200 dólares!” “Senhor, essa maçã custa só duas dessa nota menor!” Tirei as notas certas e paguei o feirante, que ficou muito chateado comigo! “Muito obrigado, Moço! Aquele cara queria me enganar!” “Dá onde o senhor é?” “Sou de Minas Gerais, trabalho de lavar pratos em uma escolinha de Itabirito!” “E veio pra cá pra garimpar?” “Não senhor, quando era moço, assistia os filmes e sempre tive vontade de conhecer os lugares que via... Assisti ‘Casablanca’, meu sonho era ir pra lá, mas como não tenho dinheiro vim conhecer a Floresta Amazônica!” “E como veio parar na Guiana?” “Nunca tinha visitado um país estrangeiro e como estava perto, vim realizar meu sonho, igual o que eu via nos filmes!” “A vida não é um filme hollywoodiano, então faz assim Mineiro, pra você não ser enrolado por mais ninguém, amanhã eu te levo pra conhecer a cidade, ok!”
Fiquei hospedado na mesma pousada dos garimpeiros, parecia ser o mais barato, fui jantar no restaurante da pousadinha de madeira, que estava lotado de mineradores, e, quase cai pra trás com o valor do PF: “Arroz, feião e frango por 40 reais, moça!” “Também recebemos em onça...” perguntei para um dos garimpeiros que jantava: “Por que vocês não comem na cidade, não custa nem dez reais um prato de comida por lá?” “Ahhh, nóis não sabe falar a língua dos caras e eles não aceitam ouro como pagamento...” No hotel conheci uma senhora, que estava pesando algumas gramas de ouro numa balança enferrujada, ela ia buscar roupa no Brás (São Paulo) e as revendia para os garimpeiros daqui. Também conversei com um senhor do Maranhão, que estava arrumando suas malas pra voltar ao Brasil, ele suava frio, sua camisa estava encharcada, e tremia, tremia tanto que tinha até dificuldade pra falar: “Acho que estou com febre amarela e tenho que voltar pra Boa Vista pra me tratar!” “E o senhor conseguiu encontrar muito ouro no garimpo?” “A gente até acha alguma onça, mas a gente acaba gastando todo o dinheiro por aqui, com bebida, puta, aluguel de casa, polícias corruptos...“
No outro dia, depois de caminhar um pouco, o Mineiro disse: “Moço, eu tô meio velho, num sabe e o senhor anda demais da peste, nóis pode voltar pro hotel pra descansar um pouco agora?” Estava disposto a desbravar a Guiana Holandesa, disse: “Mineiro, amanhã vou partir pro Suriname, então a gente vai se despedir por aqui, ok!” “Moço, eu posso ir com o senhor pro Suriname?” “E como vc vai fazer pra voltar pro Brasil depois? Se não sabe nem falar Inglês?” “Ahh, eu dou um jeito, se eu cheguei até aqui eu posso voltar, uai!”
Pra conseguir um transporte não era tão simples, era necessário fazer uma ligação, conversar com o dono da minivan, passar o endereço de onde estava hospedado pra ele vir ti buscar no outro dia e tudo isso em inglês... O carro chegou às quatro da madruga na pousada... Seguimos direto pela estrada, esta de asfalto, até o rio Berbice que separava a Guiana do Suriname, pra atravessar a fronteira perdemos quatro horas. Os policias da aduana nos entregou os formulários para serem preenchidos e entregarmos na alfândega, o Mineiro me disse: “O Senhor poderia preencher pra mim, é que eu não sei escrever...” “Mineiro, você é maluco? Como vem pra outro país sem saber escrever?” “Ahh Moço, era meu sonho!” “Mineiro, viajando dessa forma seus sonhos podem se tornar pesadelos! Me dá o formulário...” “Obrigado, o senhor é muito gentil!”
A história continua em

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