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Relato Cairo

CAIRO - NEGOCIANDO SONHOS

No aeroporto do Cairo tudo ocorreu muito bem, paguei os 15 dólares e rapidamente estamparam o visto no meu passaporte, tudo sem complicações... Quer dizer, até sair do setor de desembarque do aeroporto... Quando pisei em solos egípcios percebi que deveria ter a ‘paciência de Jó’! No Egito tudo é super barato, isso quer dizer: extremamente barato! Então eles vão lhe oferecer serviços, passeios turístico, hotéis, roupas, frutas, a todo instante! Os preços oferecidos estarão inflacionados, e, mesmo assim você vai achar barato! Se você não se importar com os valores, terá uma vida tranquila... Os europeus não se importam, os americanos também não... Mas ‘euzinho’ quero pagar o preço justo, o verdadeiro, simples assim... Então, tenho que perder tempo negociando! E como faço uma viagem independente: sem guias, sem pacotões, sem frescura, sou perturbado constantemente pelos vendedores egípcios, que forçadamente tentam me empurrar os serviços que todos os turistas “normais” compram; já eu, rs... Esse é o preço que se paga no Egito pela Liberdade! A falta dela... No aeroporto depois de uma intensa negociação de meia hora consegui um hotel no centro da cidade do Cairo por 20 dólares (a Diária) por três noites com café da manhã incluso e um táxi para realizar o transfer até o hotel.

 

Até de madrugada o trânsito era infernal pelas ruas da capital. O Hotel que me hospedaria ainda tem a arquitetura da década de 50, espelhos na parede, carpete aveludado e vermelho, reprodução das pinturas dos deuses egípcios decoravam as paredes do elevador. Meu quarto parecia um daqueles cabarés antigos, que nunca fui... Uma lâmpada fraca e vermelha, uma cama enorme, carpete velho e queimado por cinzas de cigarro e um grande espelho desbotado na frente da cama, em que eu conseguia ver só a minha metade podre... No último andar do hotel tem um mirante extraordinário da cidade do Cairo, de lá vi um pouco distante, sobre um monte todo iluminado, a mesquita da antiga cidadela de Saladino... Logo pensei: “Vou chegar até lá caminhando daqui alguns dias!”

 

O café da manhã foi meio estranho: ovo cozido, chá, uns bolinhos adocicados... E muita gente tentando me oferecer pacotes turísticos para as pirâmides de Gizé... O Egito vivia uma turbulência política. Muitos conflitos, muitas bombas, ataques suicidas e certa intolerância com os gringos! Em 2013 houve um golpe militar, em que o então presidente Mohamed Mursi, foi deposto do poder, assumindo assim o governo Al-Sisi, mas o povo clamava por novas eleições. Toda essa turbulência política afetava o turismo, muitos turistas tinham medo de visar o Egito naquele momento, então os locais turísticos ficavam um tanto quanto vazios... Eu não queria ser um alvo fácil, um bode expiatório no meio dessa guerra, então coloquei a roupa mais discreta possível para andar pelas ruas de Cairo e passar meio desapercebido... E como estava sozinho, me sentia um tanto quanto coagido para tirar fotos da cidade, não tinha coragem de retratar o que estava vendo. Tirar a câmera num país com tensões política por causa da ditadura não era uma boa ideia. Estava com medo, mas tentava andar com naturalidade pela cidade. Quando sai da “jaula turística” comecei a me divertir um pouco com Cairo, ninguém falava inglês, tudo era escrito em Árabe! Tinha que decorar os números em árabe para não ser enganado ao comprar algo... Tive uma ideia: Ler as placas dos carros, até decorar os números, rsrs... As mulheres andavam pelas ruas do Cairo com os cabelos cobertos e com roupas escuras, mas as damas que estavam dentro de carros eram diferentes: com batom vermelho, maquiagem, sobrancelhas definidas, um pouco dos cabelos a mostra... Elas sorriam quando me viam, me mandavam beijos... Diziam: “Salamaleico!” a barba não escondia minha origem latino-americana, eu não estava tão desapercebido assim, mesmo discreto qualquer um que me visse caminha pelas ruas de Cairo, sabia que eu era um gringo! Era moda entre as egípcias de maior poder aquisitivo fazer cirurgia plástica para diminuir o tamanho do nariz, enquanto aqui no Brasil se aumenta bunda e peito... Em cada parte do mundo as mulheres querem embelezar a parte do corpo que estão à amostra...

 

Percebi que o centro de Cairo estava colorido de vermelho e branco, faltavam alguns dias para Valentine’s Day... Vendiam corações, flores, bonecos de múmias de gatos... Era uma tradição no Egito mumificar os gatinhos e depois como oferenda aos Deuses egípcios jogar a múmia no rio Nilo... Em troca os Deuses enviavam um grande amor à pessoa. Então eu já sabia o que iria comprar pra minha namorada, que me esperava ansiosa em São Paulo (eu acho?)... Em nome do meu amor, um coraçãozinho egípcio, estava escrito “Eu te Amo” em árabe... Depois de meia hora de negociação, guardei o coração do meu love na mochila, estava ansioso para fazer a surpresa, podia perder tudo até chegar a São Paulo, menos o meu coração Egípcio...

 

Fui até o metrô de Cairo... Ele não tinha muita diferença dos trens do subúrbio paulistano, a não ser o cheiro de CC que era maior... Os passageiros ao perceber a cor dos meus olhos ofereciam um banco para que eu pudesse sentar: os velhos, os mais humildes moradores de Cairo, todos queriam ceder seu lugar em vagões lotados... Eu me sentia constrangido e não aceitava a gentileza, insistiam, mas não sentava, fui até a estação de Giza de pé. A saída da estação dava de frente pra uma grande favela egípcia, tentava sair de lá e do comércio de rua e chegar à Avenida Al Haran, mas não demorou muito para ser abordado por um egípcio, pronto a me ajudar, para ganhar uma modesta gorjeta... Queria a qualquer custo me levar até um táxi, não aceitei, dizia que queria caminhar sozinho, apareceu outro se oferecendo para ser meu guia, despistei... Até que sai daquele labirinto de venda de panelas e chinelos de couro e cheguei à Al Haran! Eu sabia que no final da avenida, a seis quilômetros, estavam as pirâmides de Quéops... Então borá caminhar e imergir na cultura egípcia...

O trânsito no Egito era infernal! Pior que o de São Paulo, parecia que a qualquer momento era horário de pico no Cairo! Carros antigos e velhos se espremendo nas ruas estreitas e empoeiradas da capital! Parei num restaurante local para almoçar, a comida ficava exposta num fogão antigo e enferrujado... Mas era cada coisa gostosa, não sabia o nome de nada, mas queria provar e comer tudo que tinha ali: Tinha charuto de repolho com carne moída, tinha berinjela a milanesa, linguiça assada, rabanete refogado, pimentão recheado, abobrinha, couve flor frita, salada de beterraba... Eu só ia apontando o que queria para o garçom bigodudo, com camisa de regata branca, seus pelos pulavam pra fora da camisa, kkk... Depois ele me levou pra parte de cima do restaurante, onde ficavam as mesas. Quando emergi na escada, todo mundo parou o que estava fazendo e começaram a me olhar por alguns minutos, depois voltaram a comer... O local era mal iluminado, uma parede azul pintada à broca, mesas e cadeiras de uma madeira pesada, e, lá as músicas eram parecidas com as do Kalheb. Vira e mexe o bigodudo subia com uma bacia amarela cheia de pita (pão sírio) e passava de mesa em mesa oferecendo aos clientes, quando a bacia se aproximava eu enchia o meu prato de pão... Fiquei empanturrado e satisfeito! Quando veio a conta, o susto: três dólares tudo aquilo! Ahhh, como eu adorava viajar sem as amarras do turismo! Hora de voltar a caminhar, faltavam apenas dois quilômetros para chegar às pirâmides...

 

À medida que caminhava, começava a enxergar uma das pirâmides, a empolgação era incrível, mas elas não ficavam no meio do deserto, um mar de casas sem reboque emergiam ao seu redor. Ao chegar ao sítio arqueológico, vários egípcios sem nenhum pudor me seguravam pelo braço, me puxando para o que eles diziam ser a entrada, cada um me puxava pra um lado, aborrecido me soltava e dizia que seguiria para onde eu quisesse e sem ninguém! Aquele foi um momento tenso, porque eles se irritavam com minha atitude, queriam a todo custo ganhar dinheiro comigo, segui até onde realmente se comprava o tíquete da entrada (80 libras), mas da bilheteria até o portão de entrada novamente fui importunado, um homem encostou do meu lado e disse que seria meu guia pelas pirâmides, disse: “Não preciso de guia!” “É obrigatório, Senhor!” “Mentira!” “Então o Senhor deve me pagar por caminhar contigo até aqui!” “Não vou pagar nada! Você veio comigo até aqui por que quis!” “Isso é um insulto, Senhor, ti dei várias informações importantes e não vai ter a gentileza de me retribuir com algumas libras!” “Não!” Se você quer evitar aborrecimentos, contrate um pacote, pague o triplo e não vão te importunar, eu acho... Atravessei a bilheteria e respirei fundo, pensei: “finalmente vou poder curtir as pirâmides, tirar as fotos tranquilamente...” doce ilusão a minha... Apareceu um egípcio montado no camelo: “Quer que eu tire uma foto sua, Senhor?” “Não, obrigado!” “Então gostaria de dar uma volta de camelo?” “Não, obrigado!” “Uma volta é free!” “Eu não quero andar de camelo!” eu andava de um lado pra outro e ele me seguia com seu camelo, quase meia hora de perseguição: “Não precisa ficar me seguindo!” “Caso o Senhor mude de ideia!” “Eu quero ficar sozinho, posso!” “Me desculpe, Senhor, mas poderia ter a gentileza de me pagar para deixá-lo só!” “Não! Não vou pagar nada!” ele se retirou irritado, consegui tirar algumas fotos, mas logo surgiu outro egípcio com seu camelo: “Gostaria de andar de camelo pelas pirâmides, Senhor?” Foi assim minha visita por Gizé, aqui não tinha a liberdade para caminhar tranquilo entre as pirâmides, sentar, refletir, admirar, filosofar... Sempre aparecia alguém pra tirar o meu sossego...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tentei ir pra uma duna, um pouco mais distante, pra ver se conseguia ficar em paz pelo menos uns minutinhos, escondido dos vendedores ambulantes... Mas um garotinho com um jegue conseguiu me encontrar... O jegue vinha carregando bolsas com refrigerante e gelo! Como eu estava com sede por andar pelo deserto e para evitar perturbações, perguntei: “Quanto que é a Coca Cola?” “15 libras, Senhor!” eu tinha comprado à mesma Coca Cola gelada no centro de Cairo por quatro libras... “Não, está muito caro, deixa pra lá!” “12 libras então, Senhor!” “Não!” “Então quanto, o Senhor, acha que vale a Coca Cola, dê seu preço!” “Eu pago quatro libras!” “O Senhor está me insultando com esse valor!” “Então, eu não quero!” “Olhe, Senhor, eu tenho um burro para sustentar, não é fácil a minha vida aqui no Egito! Eu ti vendo a Coca Cola por 10 libras!” “Não, no máximo cinco libras pra você parar de encher o meu saco!” “Pode pagar oito... É estrangeiro, tem uma vida boa na Europa, tem mais dinheiro que eu!” “Não sou europeu, sou brasileiro e pago quanto vale!” “Ok eu ti vendo por cinco libras...” como era difícil comprar uma Coca Cola nesse país! Ele me deu o refrigerante gelado e eu ia lhe pagar as cinco libras, mas ele se recusou a receber: “O que houve agora?” “Eu não posso receber só isso, Senhor, seria um insulto!” “Foi o combinado!” “Se não pode me pagar mais do que isso fique com o refrigerante, eu mereço mais que cinco libras, Senhor!” “Então tudo bem, não pagarei nada!” “Que vergonha, Senhor, tenho um burro para criar e mereço receber o que é justo, só isso!” “Ahhh, tome dez libras e some daqui!” o garotinho abriu um sorriso maroto, havia vencido o duelo e desapareceu com o jegue... Na volta peguei uma lotação até o metrô, não iria caminhar os seis quilômetros na volta...

No segundo dia na capital do Egito, fui até o Museu do Cairo, atravessei emocionado a ponte que cruzava o rio Nilo, estava diante de um dos maiores rios do mundo! Estava do lado daquele rio lamacento, entre ele o Tietê só havia uma diferença: A história que cada um carregava... Ao chegar ao museu levei um susto, ele estava cercado por vários tanques de guerra e soldados fortemente armados... Devidos aos conflitos políticos, Al-Sisi, estava preocupado que acontecesse novamente outra invasão no museu... No ano de 2011 a população egípcia pedia a renuncia do então presidente Hosni Mubarak, manifestantes invadiram o museu e destruíram mais de 70 relíquias históricas, e, saquearam tantas outras durante uma noite! Sabendo disso, o governo passou a proteger o museu 24 horas por dia... Então fui revistado, passei pelo forte esquema de segurança e finalmente estava dentro do museu (100 libras)... Finalmente encontrei a paz que tanto almejei... Lá ninguém me importunava e podia ver tranquilamente todas às relíquias do museu: Múmias, estelas, pedras antigas, artefatos de mumificação! Passei o dia inteiro ali dentro... Um dos mais incríveis museus que já visitei em minha vida, fiquei encantado em ver toda história egípcia passar diante dos meus olhos...

 

No terceiro dia, tentaria chegar por conta própria, caminhando até a cidadela de Saladino, mas não seria fácil, eu não tinha mapas, a população longe dos centros turísticos não falava inglês e as ruas além de serem escritas em árabe eram confusas, não havia uma construção geométrica lógica, então era fácil de se perder... Mas viajar é isso, superar desafios e desbravar os lugares, pensava: “Qual vai ser a graça de ir de táxi? Ficar preso numa gaiola móvel e não ver nada da verdadeira Cairo!”

 

Para chegar à cidadela de Saladino, acabei cruzando o bairro mulçumano, um dos mais pobres do Cairo... E vou lhes dizer a verdade, eu nunca senti tanto medo na minha vida viajando como neste dia! A qualquer momento podia sair um homem bomba no meio daquela favela e me agarrar, e, juntos nos encontrarmos com Maomé no paraíso! Estava sozinho, indefeso e inseguro ali, mas por mais paradoxal que possa ser, estava amando andar por aquela região esquecida do Cairo, podia observar o dia a dia daquele povo e tudo parecia estar parado no tempo, era surreal! As ruas eram em boa parte de terra, só a rua principal era asfaltada. Prédios antigos cobriam o céu, eles se embolavam em ruas estreitas, o bairro tinha um ar de abandonado por centenas de anos, parecia que uma tempestade de areia e terra havia invadido essa região, tudo era empoeirado, cor marrom... Todas as construções estavam no reboque, egípcios bigodudos sem camisa e com calça bege ficavam sentados no chão com um martelo gigante e com uns pregos ou cravos antigos também gigantes amarrados em uma corda, devia ser seu instrumento de trabalho. Estavam ali à espera de trabalho... Passou um caminhão velho, parou e levou três dos homens com seus mantimentos na carreta... Em algumas esquinas em que o sol conseguia chegar, eles colocavam o carro velho, e, sobre o veículo, vários pães sírios. Alguns carros para não ficar expostos a poeira eram cobertos com imensas cobertas de retalho de panos coloridos... De repente, aparecia do nada de uma das vielas de terra, uma carroça cheia de garrafas de leite, o jegue calmamente seguia cruzando a avenida, na parte de trás da carroça uma criança ia dando pequenas batidas nas garrafas, era o barulho suficiente para que os moradores do bairro descessem dos apartamentos para comprar o leite, as mulheres vinham com um balde de alumínio na cabeça... O comércio também era bem rústico, apenas um galpão onde algum homem barbudo e sujo trabalhava, tinha o serralheiro, o marceneiro, o tapeceiro... Todos os seus instrumentos de trabalho eram antiguíssimos... Eles só paravam de trabalhar pra me ver passar pela rua! E no meio de tudo aquilo, grudada nos prédios ficavam algumas mesquitas, todas engenhosamente construídas com tijolos de barro, as janelas eram buracos circulares nas paredes, e, passando pela rua podia ver alguns mulçumanos com vestimentas de um branco impecável orando de joelhos em um tapete vermelho, direcionados para Meca... Eu assustado com todos aqueles olhares sem sorrisos pra mim, queria sair logo de lá, mas ao mesmo tempo, queria continuar imerso naquela cultura ancestral...

 

Avistei a mesquita que ficava no topo da montanha na cidadela de Saladino, mas percebi que teria que cruzar o cemitério de Cairo (Bab El-Wazir)... E foi outra loucura! Barbudões armados ficavam sentados encima das sepulturas tomando chá, mulheres com sáris coloridos saiam de trás das tumbas islâmicas, com imensos bules e iam enchendo os copos de cada um dos capangas, outros fumando narguilé me observavam atentamente caminhando pela rua, as arquiteturas dentro do cemitério eram fascinantes, mas não tinha coragem de entrar lá sozinho, o que descobri depois é que muitas famílias pobres invadiram o cemitério para morar no meio dos sepulcros e ficavam armados pra se proteger das investidas do governo que pretendia tira-los de lá...

 

Depois de sair da rua do cemitério e caminhar mais um pouco, finalmente cheguei à entrada da cidadela de Saladino (60 libras)! Lá poderia ver algumas ruínas dos meados de 1200! E a imponente Mesquita de Muhammad Ali, que domina os céus de todo Cairo, que pude ver iluminada à noite, quando cheguei à cidade alguns dias atrás! E no mirante da cidadela descobri duas lindas e imponentes mesquitas ao redor para fotografar: Al-Rifa'i Mosque e a Mosque-Madrassa of Sultan Hassan... Visitar a cidadela foi divertido, mas por ser um tanto turística, perdia seu charme, nada se comparava a andar pelas ruas do bairro islâmico! Na cidadela os vendedores tentaram me vender pinturas egípcias da cidade do Cairo, que remontavam as eras medievais... E era incrível como o bairro islâmico permanecia atualmente da mesma forma aos retratados nas pinturas!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Marcelo Nogal

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